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‘A História de O': você pensa que manda, eu finjo que obedeço

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capa_historia_O - 2.inddEm tempos onde a emancipação feminina contra a histórica opressão machista se enquadra perfeitamente na frase de Bertolt Brecht‎ – “Que tempos são estes em que temos de defender o óbvio?” –, fica difícil pensar em qualquer natureza de submissão feminina que seja, digamos, libertária.

Mas a liberdade consiste em seguir seus próprios caminhos e fazer suas próprias escolhas, inclusive se a escolha de uma mulher é ser submissa ao homem que ama.

Mas se tal opção resulta, na verdade, da necessidade de “provar” algo – no caso, o amor –, nos vemos diante de um novo velho cenário onde a escolha não é exatamente livre. Tentar provar algo sobre si mesmo para terceiros é um tipo de tribunal às avessas, onde o réu precisa provar a própria inocência. E agir em função de terceiros, ainda que seja por algo, em teoria, afirmativo – como o amor –, representa apenas uma outra forma de prisão, e não de liberdade.

Julgamentos morais à parte, a necessidade de uma mulher de provar seu amor pelo amante submetendo-se, aparentemente por sua própria vontade, a todas as formas de submissão – o que inclui ser chicoteada, amarrada, violentada e até marcada a ferro e fogo –, é a temática crua do clássico A História de O, publicado na França em 1954 por Anne Desclos ainda sob o pseudônimo Pauline Réage, e posteriormente levada à versão HQ por Guido Crepax.

Enquanto a versão original nos traz a trama da personagem “O” pela prosa, a versão em quadrinhos deixa de lado a liberdade do leitor de imaginar os cenários para mostrar, por ela mesma, as eróticas cenas de submissão da personagem. Tudo começa quando “O” é levada para o castelo de Roissy, nos arredores de Paris, por seu amante René para ser “treinada”: enquanto, na vida profissional, a protagonista é uma bem-sucedida fotógrafa de moda, ela ainda precisa dar os primeiros passos para ser uma perfeita mulher submissa ao amante.

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O levantamento inicial de nossa resenha fala em liberdade porque a personagem não é forçada a nada; há um tipo de paradoxo moral na história de O: em todos os momentos, ela se mostra decidida a fazer tudo o que lhe mandam, mas sempre é previamente consultada a respeito. É basicamente como nos jogos eróticos de dominação na vida real: há um acordo tácito entre dominador e dominado. No livro e no quadrinho, é como se a personagem dissesse, sem dizer uma única palavra: “Ok, eu vou deixar que vocês mandem em mim”.

Uma complexa relação social e sexual baseada em jogos de poder que, tal como na relação carnal comum, representa uma troca: um é dominado porque gosta – ou porque quer provar algo –, o outro domina também porque gosta. O saldo é um grupo de pessoas sexualmente satisfeitas. Mas, a despeito de todos os debates que o tema pode despertar, A História de O passa longe dos debates morais. A história é crua, visceral, e se apresenta ao leitor despida de tais julgamentos. Em tese, é “imparcial” ao mostrar a série de acontecimentos que engendram os jogos de poder sexual sem enquadrá-los.

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É bem diferente da obra de Eric Stanton, outro nome do erotismo. Diferente não apenas porque, neste caso, a dominação é feminina, mas sobretudo pela forma como a dominação ocorre: não há acordos, não há troca; homens são dominados, espancados e submetidos a humilhações porque são derrotados em situações específicas (até lutas corporais), e suas condições são como de escravos de guerra.

Talvez o objetivo de Stanton fosse mostrar, de forma didática, como funciona a própria lógica do machismo e sua opressão sem diálogo. Isso porque, nascido e criado numa cultura em que está do lado opressivo, fica difícil que o opressor – no caso, o homem – enxergue sua própria condição de opressor, porque tudo se torna naturalizado e inerente à própria dinâmica social. Stanton, portanto, literalmente “desenha” a mesma situação sob outra ótica para mostrar como a opressão é cruel.

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Voltando à trama de “O”, não há, de cara, essa mesma possibilidade pinçada dos quadrinhos de Stanton. Não se sabe – ou não fica evidente – se a protagonista é, de fato, uma mulher submissa ou se, do seu modo, ela se deixa levar para mostrar que, na verdade, os submissos são os homens: o seu amante, René, que pede sua permissão para levá-la a Roissy, ou o amigo do amante ou os demais homens que surgem no caminho com vistas a dominá-la. Tudo, porém, feito apenas mediante sua autorização.

Um jogo onde os papéis de dominante e de dominado ficam a cargo do leitor, das suas interpretações ou, quem sabe, dos próprios fetiches ocultos.


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